sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Os étimos da vida

Não consigo fugir. Aqui vou eu escrever novamente sobre a língua portuguesa. Então, os exatos demais abstenham-se do meu texto. Ou não, porque esse assunto é supimpa. Falarei, brevemente (porque esse assunto me empolga, então vou tentar ser breve), sobre a etimologia, ramo dos estudos da linguagem que mais me fascina. Antes mesmo das figuras de linguagem. Aliás, esse interesse sempre existiu. Um dos motivos (talvez o principal) que me levou a fazer Letras - Port/ Latim.
É fato: o latim é o âmago de inúmeras línguas. Ele seria um dos sub-ramos do indo-europeu, essa considerada a proto-língua, a língua-mãe da maioria das línguas existentes (a minoria faz parte de outros ramos, como o afro-asiático e o sino-tibetano). O indo-europeu seria uma suposição de especialistas, por meio de estudos comparativos entre as línguas. Há apenas teorias, nada de provas sobre a outrora existência dela. E o latim é a língua que mais influiu na formação das línguas europeias, por conseguinte nas também faladas nas Américas e na Oceania (sem falar de alguns países na África também). Não vou entrar em detalhes históricos, sobre a dominação do Império Romano e tal. Vou falar exclusivamente sobre a formação dos vocábulos. Etimologia vem do grego etumon, "origem" e logos "palavra, estudo". Então, é o estudo da raiz, da origem das palavras.  
Gostaria até de ter feito ou ainda fazer, quem sabe, uma especialização nisso, mas penso que vida acadêmica não é pra mim.Vejo então que a única maneira de ganhar a vida com raiz seria fazendo agronomia e estudar plantações de tubérculos (tá, essa foi horrível). Enfim...
No momento, estudar etimologia configura-se apenas como um hobby, sem pretensões mais audazes.
Comecei, tem um tempinho, a ler "A Insustentável Leveza do Ser", de Kundera (então, minha alma aquietou-se um pouco para atividades mais intelectuais. Eu disse um pouco). Kundera utiliza-se de um casal, Tomas e Tereza (que às vezes torna-se um trio, com Sabina), para falar das relações humanas sejam amorosas ou de amizade, e faz reflexões filosóficas, sociais e até linguísticas. E é nesse ponto que me atenho, no capítulo (o livro é divido em partes que por sua vez são divididas em capítulos minúsculos) em que ele fala sobre a origem da palavra "compaixão" em várias línguas. Nas línguas derivadas do latim, a palavra é formada pelo prefixo com, que significa "junto de, com" e passio, que significa "sofrimento". Assim, significa sentir simpatia por quem sofre, sofrer junto, o que teria uma carga pejorativa. Mas nas línguas de origem eslava e germânica, há o prefixo equivalente, mais a palavra que significa "sentimento", como em tcheco sou-cit, polonês wspol-czucie, alemão mitge-fühl, sueco med-känsla. Ou seja,  nessas línguas, a palavra é empregada mais ou menos no mesmo sentido que "compaixão", mas reveste-se de uma aura muito mais elevada que a outra. Significa então, poder "sentir" todo e qualquer sentimento, não somente o sofrimento.
Com isso, podemos ver como a linguagem reflete a maneira de pensa de um povo. É como um arquivo, onde ficam gravadas várias informações relevantes sobre como a sociedade em questão via, percebia o mundo.
É redundante falar em diacronicidade em qualquer texto sobre etimologia. Mas o estudo diacrônico (estudo das formas contemporâneas comparando-as com as formas arcaicas) é interessantíssimo não apenas para ver pura e simplesmente a origem mecânica da coisa, mas também para ir a fundo e tentar entender o porquê da palavra ter tomado tal forma. A história, a filosofia e porque não a sociologia devem muito à etimologia.
Outro exemplo: a palavra "comer" em latim é edere. Por se usar muito o tal prefixo com (por vezes confundido com a preposição cum, talvez um venha do outro, suponho) junto ao verbo edere, acabou-se cristalizando, trazendo até nós a forma "comer". Mas e aí? Por que utilizavam com + edere? Porque, para os romanos, as refeições nunca eram feitas solitariamente. Era prática comum sempre se sentar a mesa para comer com mais pessoas. Com + edere = comedere. E passando por vários processos de perda de fonemas e tal, chegou ao nosso "comer" (estranhamente, bibere não era usado com o prefixo com, na minha opinião muito mais lógico, porque comer eu posso fazer sozinha, agora beber... Muito melhor acompanhado. Mas eles não viam a coisa desse jeito).
Eu gostaria de ficar aqui falando e dando exemplos, mas vai ficar muito chato pra quem tá lendo. Acho que é legal só pra mim essa parada (e pra quem compartilha do mesmo interesse...). Mas recomendo o estudo do latim a todos, porque com ele, muitas das vezes, nem precisamos de dicionário pra saber o significado de alguma palavra. E nem digo só nas neo-latinas não. Mais de 80% (não sei a porcentagem correta, mas é algo altíssimo mesmo) das palavras do vocabulário da língua inglesa e alemã vêm do latim. Exemplo que adoro é o da palavra estrela: estrella em espanhol, stella em italiano, αστέρι em grego (lê-se astéri. Coloquei o grego só porque sou fanfarrona.), star em inglês e stern em alemão. Preciso dizer a semelhança? Até em grego vê-se a origem. Outro exemplo: deletar. Vem do verbo latino delere, "apagar". Foi pro inglês to delet, e daí veio pro português. Ou seja, ela saiu do latim, pegou carona com o inglês e foi pra uma neo-latina, cujo curso natural seria vir do latim direto. Mas percebe-se uma imanência meio velada no português, como na palavra "indelével", "aquilo que não se pode apagar".
Sobre o que eu falei de não precisar de dicionário algumas vezes, aconteceu comigo outro dia, e fiquei tão feliz! Isso porque foi com uma palavra aparentemente difícil. "Procrastinação". Nunca me interessei em saber o significado, já tinha visto por aí e tal. Mas aí rolou de aparecer num texto, e na mesma hora tive um "insight": pro, "para frente", cras, "amanhã". Pronto! Ato de deixar algo para amanhã, adiar. Fiquei muito contente, sério mesmo. Pode parecer besteira para alguns, mas acho super satisfatório. Satisfatório, aliás, se eu não soubesse o que significa, é facilmente desvendável: satis, "muito",  facere, "fazer". Grosso modo, "algo que faz muito", ou seja, que enche... satisfaz! Outra palavra: essa nem foi eu que descobri, li em algum lugar e fiquei chateada de não ter pensando nisso antes: "Consideração". Com, "junto de, com", sideralis, "relativo aos astros". Num momento arcaico significou "pensar, confabular junto aos astros, aos deuses". Hoje também é pensar, confabular, mas infelizmente não olhamos mais tanto pro céu como deveríamos... 




2 comentários:

  1. Texto giganteee... Ninguém vai ler isso. E ainda esperta na arte de mal paragrafar...

    ResponderExcluir
  2. Ju, adorei o post! Muito interessante!

    Ah, e outra coisa... adorei "A insustentável leveza do ser"... eu tenho e li há uns cinco anos... gostei bastante.

    beijinhos, querida!

    ResponderExcluir

Loqueris!